A doença é uma vivência individual de um desajuste, do desconforto, da dor, da presença da morte. A doença como um fenômeno isolado se apresenta de forma semelhante entre indivíduos pobres ou ricos. Assim, essa regularidade da aparência da coisa na espécie, e até entre espécies, permite que se categorize e nomeie um grande número de alterações no organismo biológico. Um Raio X de pulmão de um tuberculoso, por exemplo, tem um padrão característico e indiferente ao nível de renda do indivíduo acometido. Entretanto, pobres ou ricos não adoecem, não vivem uma doença ou as possibilidades de recuperação da mesma forma. Considerar essa diferença abre a possibilidade da construção de justiça sanitária, da equidade no uso dos recursos públicos. Essa condição metodológica impõe que não se possa escapar da armadilha da aparência do fenômeno caso não se questione sobre sua articulação na sociedade.
Com as pesquisas do cientista francês Louis Pasteur, a hipótese da presença de eventuais partículas estranhas (“partículas cadavéricas”) causadoras das doenças ganhou justificação teórica. Desconhecidas e microscópicas criaturas haviam sido identificadas: a chamada era bacteriológica iniciava, de forma avassaladora, o seu período de domínio explicativo da causação das doenças. Nos anos seguintes, a observação e o estudo da determinação das doenças infecciosas expuseram a limitação da explicação unicausal e simplista do microorganismo como condição necessária e suficiente para a ocorrência da infecção e do adoecimento. Assim, a perda da consideração da vida social e coletiva como essência da produção da doença, na qual a dinâmica de uma estrutura-contexto produz o fenômeno, leva, por conseguinte, à perda do entendimento do próprio fenômeno.
As teorias da determinação das doenças ampliam-se e, após terem abandonado os templos religiosos, abandonam o deus-microscópio e caminham na direção de um modelo explicativo histórico e integrante da totalidade social. A compreensão da realidade além das aparências não nega o conhecimento da existência ou da objetividade dos fenômenos, mas reconhece que é necessário articulá-los com uma totalidade concreta, para compreendê-los a partir de suas mútuas determinações.
Não se supera o conhecimento da aparência de um fenômeno social quando a tentativa de explicar a coisa em si é desarticulada das suas conexões com o todo, produzindo um pseudoconcreto.
A busca da articulação do fenômeno-doença com a vida social e coletiva abre novas possibilidades para a atuação dos profissionais de saúde, colocando tal fenômeno ao alcance, também, da atuação da sociedade como um todo, que é convocada a cuidar da saúde coletiva e das condições para a produção e reprodução de uma vida saudável.
Na Reforma Sanitária Brasileira proposta e efetivada na Constituição de 1988, a sociedade, por meio de seus constituintes, refutou a conceituação da saúde como uma mercadoria a ser ou não consumida conforme as posses individuais ou como benefício contributivo resultante de um sistema de proteção. Ela não é uma questão de consumidores, ou de indigência ou de benemerência. Ela passou a ser expressão da conquista de um direito de cidadania em respeito à dignidade da pessoa humana. A partir dessa definição legal-formal, a saúde impõe a presença ativa do Estado, depende dos fundos públicos e comporta-se conceitualmente como uma antimercadoria no interior do sistema capitalista, o que certamente resulta na natureza extremamente polêmica e repleta de avanços e retrocessos. Como sugere Walter Benjamim “O dinheiro ocupou ‘militarmente’ o centro das conversas e das relações entre as pessoas, empobrecendo brutalmente a arte de conversar e conviver e obrigando as pessoas a só falarem nos preços das mercadorias [...]”.
Em discurso no lançamento de sua candidatura à presidência, em 2010, o ex-governador de São Paulo José Serra enfatizou sobre o “trololó rico e pobre”, assim afirmando: Um governo deve sempre procurar unir a nação. De mim, ninguém deve esperar que estimule disputas de pobres contra ricos, ou de ricos contra pobres. Eu quero todos, lado a lado, na solidariedade necessária à construção de um país que seja realmente de todos.
Tal posicionamento, aparentemente de um político estadista, conflita-se com a condução de seus governos e com a prática dos seus representantes no parlamento que se esmeram por incentivar as vias restritivas ao direito à saúde, como o fim da CPMF sem outra alternativa real de financiamento. Agora, tentam introduzir em São Paulo a separação entre ricos e pobres no sistema público universal de saúde.
A Assembleia Legislativa paulista aprovou pomposamente, com voto unânime da bancada governista, tal privilégio, o qual tenta introduzir em hospitais públicos administrados por Organizações Sociais o atendimento desigual entre ricos e pobres. Optaram esses legisladores por criar privilégios em prol de alguns e de potencializar a lucratividade dos planos privados de saúde. Essa Lei tem sim como centro a questão entre ricos e pobres, opta pela iniquidade em detrimento de políticas públicas universais e iguais para todos.
A saúde é questão assumida formalmente pelo conjunto da sociedade como direito de cidadania e, portanto, universal, igualitário, não contributivo e financiado pelos fundos públicos, configurando-se, assim, a nova conjuntura político-social. É em torno dessa nova condição, da saúde como direito do cidadão e dever do Estado, formalmente reconhecida como de relevância pública e das obrigações do poder público, que se abre a disputa pelos fundos públicos. Polos em disputa no interior do poder público, articulados ou não com interesses privados que mantem atividades de saúde balizadas pelo princípio mercadológico, estão concretizados nos embates entre o público e o privado articulados no interior do próprio espaço público por meio das Organizações Sociais ou com a ideia de complementariedade entre o SUS e o Sistema Suplementar ou, ainda, sobre as formas subservientes de incorporação tecnológica. Isto é, a ética do direito à saúde abrangente e radical é conflitante com a lógica do discurso pretensamente republicano que acoberta as iniquidades existentes no funcionamento do sistema social vigente.
Paulo de Tarso Puccini
17/10/2011
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