A matéria publicada no jornal FSP (4/5/2011) sobre a ampliação do atendimento privado no HC, da experiente jornalista Laura Capriglione, identificou com clareza o paradigma para esse fato no modelo gerencial do Instituto do Coração-HCFMUSP (INCOR) e despertou um importante debate.
O modelo gerencial do INCOR, que adotou uma segunda porta que estabelece acesso privilegiado para quem paga, tornou-se o exemplo originário para outras propostas semelhantes. Tal modelo produziu uma subjugação da instituição pública à ideia seletiva e iníqua da saúde privada. No mote de que tudo que é bom é mercado, o badalado hospital virou o nosocômio da preferência dos políticos da época. Lembremos da trágica perda de tantas esperanças com o falecimento de Tancredo Neves naquele hospital, que o destino impôs apesar de todo o esforço de muitos de seus profissionais. Com essa perda partiam juntos os sentimentos da grandiosidade e onipotência que certas obras humanas tentam se impregnar. Tancredo, como seu último ato político, posto que todo homem público deixa testamento, mineiramente nos comunicou a impossibilidade de a instituição INCOR colocar-se acima da ordem natural das coisas da vida, dos questionamentos e da lei dos homens.
Mesmo hoje, sem o glamour de outrora e já substituído pela moda por outro hospital-excelência, a experiência levada a cabo no INCOR, viabilizada por uma Fundação privada, orientou conceitualmente a iniciativa da transferência dos novos hospitais públicos estaduais para as Organizações Sociais (OS). Foi o que se concretizou com a lei complementar estadual nº 846/1998 que naquele momento não conseguiu a totalidade de seus intentos, pois os debates na Assembleia Legislativa acabaram por fixar a obrigatoriedade de atendimento exclusivo a usuários do SUS, posto que se tratavam de hospitais públicos. Entretanto, fruto da influência crescente das OS da Saúde na política paulista e articulando relações de interesses com representantes parlamentares, essa coalizão retomou a intenção e fez aprovar a Lei complementar nº 1.131/2010, visando a quebrar a universalidade do SUS. Essa tentativa de instituir a segunda porta também nesses hospitais, tal qual o modelo INCOR, foi regulamentada agora com uma cláusula de até 25% para atendimento diferenciado e uma boca de caixa para receber por isso. Os 25% não se referem ao objetivo do ressarcimento dos planos privados ao SUS, já devidamente regulamentado em Lei Federal, como tentam argumentar seus defensores, e sim ao quanto da operação do hospital público estadual poderá ser utilizado pela OS para gerar receita via venda direta de serviços. Se efetivada essa norma, já questionada juridicamente, o hospital público vira de vez um negócio e o cidadão, portador de direito fixado na Constituição, é expulso da cena.
Talvez empolgados com essa Lei dos 25%, que complementa a intenção da ocupação do espaço público pelas OS, jovens empreendedores de negócios e velhos gestores, ambos distantes do compromisso da afirmação da saúde igual para todos como um direito social dos brasileiros e, também, portadores de uma visão limitada sobre a finalidade dos serviços públicos, sentiram-se animados e revigorados para aumentar a parcela de venda da instituição HC.
No entanto, é preciso respeitar as pessoas que nessas instituições estão ou estiveram na defesa da saúde como direito social. Lembro-me do saudoso Professor Aristodemo Pinotti que em contraposição à defesa que seus colegas de FMUSP/HC faziam a respeito da segunda porta e do pagamento por fora, o ex-secretário de saúde Prof. Dr. Pinotti alertava que tal iniciativa entorpece negativamente os princípios do hospital público. Cria a possibilidade de cobrar honorários médicos dos seus pacientes por profissionais que já estão ganhando salário do Estado e que “despertar esses interesses entre professores de medicina ou jovens médicos e outros profissionais, que têm necessidades econômicas, que querem ganhar a vida, é como oferecer uma droga para eles se viciarem”.
Tal possibilidade enfatiza que sempre será muito importante identificar qual caminho está produzindo desinformação e deformação para a busca de uma sabedoria que prepare os jovens e favoreça um saber prudente e prático que dá sentido e orientação à existência humana e possa contribuir para o “hábito de decidir bem”, com o compromisso do fortalecimento de valores éticos e da cultura da solidariedade.
Assim, o fato que deve preocupar sobre processos de mudança no aparelho de Estado e suas instituições é que um dos caminhos de possíveis reformas está vinculado às forças desinteressadas na melhoria da gestão da coisa pública e descompromissadas com a saúde como direito universal, equânime e integral, cooptando ideologicamente para um discurso que faz pouco do princípio da universalidade, quebrando a primazia do direito social sobre o administrar.
Paulo de Tarso Puccini
São Paulo, 26 de junho de 2011.
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