domingo, 24 de julho de 2011

Novas forças em defesa da saúde ou judicialização?

A participação da população nos destinos da saúde formalmente regulamentada pela Lei federal nº 8.142/1990 tem uma grande responsabilidade e missão, qual seja, a de exercer um papel ativo e ser fator impulsionador das transformações e conquistas da cidadania.
Na vigência previsível dessas disputas, a Constituição Federal de 1988 produziu outra grande mudança: arremessou as instituições judiciais à esfera da política, especialmente quando consolidou um novo perfil do Ministério Público, paulatinamente construído ao longo dos anos 70 e 80 nos embates pela democratização, retirando-o da alçada do poder executivo, conferindo-lhe maior autonomia administrativa e independência funcional e deslocando-o da tarefa da defesa do Estado para a condição de fiscal dos direitos da sociedade.
Para tanto, dotou esse órgão renascido de instrumentos judiciais e extrajudiciais para a defesa dos direitos individuais homogêneos, coletivos e difusos – respectivamente a ação civil pública e o inquérito civil, que por sua vez abrem a possibilidade de uma ação política singular na construção de compromissos de ajustamento de conduta, o que tem permitido que o MP atue de forma original e produtiva na defesa desses direitos trans-individuais instituídos por lei. Tal defesa jurídica de direitos de dimensão coletiva, positivados em diplomas legais, configura uma nova ação dentro do ordenamento jurídico tradicional, então essencialmente individualista, alargando o acesso de demandas coletivas à Justiça. São ações jurídico-políticas frutos da intervenção do Poder Legislativo, constituinte e ordinário, e da apropriação desenvolta que a cidadania faz do novo quadro institucional e, que não significam a perda das diferenciações funcionais entre o direito e a política.
Essa tutela de interesses coletivos (aqui entendida na sua conceituação jurídica sem valoração paternalista e autoritária da judicialização) promovida pelo MP e voltada para a construção da cidadania, constitui uma nova arena judicial para a solução de conflitos no âmbito dos direitos sociais, que não tinham acesso ao sistema de justiça e que os gestores de saúde não podem desconsiderar sua importância apenas negando-a a partir de aspectos abusivos de imposições judiciais tecnicamente injustificadas. A questão não é simples, trata-se de um movimento interdependente e complexo gerado na aproximação das ações de instituições políticas e jurídicas em atenção aos direitos sociais fixados, demarcando o novo cenário político em disputa pós-constituinte.
Nesse quadro é francamente insuficiente propor-se a acompanhar tal processo a partir da pecha negativa da “judicialização da saúde”. Por outro lado, medidas judiciais tomadas sem correta fundamentação científica precisam ser conjuntamente superadas. Assim, sugere-se que nessa área do direito, ainda em construção, se deva ficar atento para as fontes da construção das normas no campo do direito sanitário. Relembrando as fontes do direito lecionadas pelo Professor Miguel Reale em seu entendimento de que o Direito é uma integração normativa de fatos segundo valores, pode-se esperançar que os costumes jurídicos e a jurisprudência impulsionem normas que se recusem a incentivar uma expectativa na esfera jurídica de que, no fundo, seja possível aceitar qualquer novidade técnica ainda que sem a devida evidência do seu benefício ou apenas para substituir procedimento costumeiro, atendendo aos interesses econômicos de inovação tecnológica sem real valor de uso. Tal impaciência ao lidar com a complexidade do problema pode resultar, nesse caso, numa abordagem pouco útil para atuar na realidade e efetivamente superar as insuficiências, precipitando-se na fixação de um prestígio ao formalismo abstrato do direito, apressadamente compromissado como meio imediato para a manifestação das tendências materiais egoístas da vida social.
Alerta-se, finalmente, que a RENASES e a RENAME estabelecidas no Decreto nº 7.508/2011 devem ser desenvolvidas como esforço público visando à fundamentação científica de ações e procedimentos efetivamente benéficos à saúde da população, mas sem a pretensão de barrar a ação jurídica. Não será produtiva para a consolidação do direito à saúde e das novas forças sociais em sua defesa vincular essas listagens a uma argumentação política da escassez, do “direito do possível”, caindo na tentação de justificar as debilidades de financiamento do sistema e criando constrangimentos burocráticos infundados à integralidade dos cuidados assistenciais.


Paulo de Tarso Puccini – médico sanitarista, doutor em saúde pública
24/7/2011

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